sexta-feira, 19 de março de 2010

St. Petersburg - Rússia

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Noites Brancas

Uma noite prodigiosa, uma dessas noites que talvez só vejamos quando somos novos, querido leitor. O céu estava tão fundo e tão claro que ao olhá-lo uma pessoa era forçosamente levada a perguntar-se se seria possível que debaixo de um céu daqueles pudessem viver criaturas más e tenebrosas. Questão esta que, para dizer a verdade, só é costume levantar-se quando somos jovens, muito jovens mesmo, querido leitor. Prouvera a Deus que pudésseis reviver com freqüência essa idade na vossa alma! Enquanto ia pensando assim em várias pessoas, é claro que acabava por recordar-me involuntariamente do panegírico que a mim próprio eu havia tecido, nesses tempos...

Fyodor Dostoievski


Flanar pelo famoso boulevard Nevsky Prospekt é a quintessência de uma viajem a São Petersburgo, Rússia. Ao observar a cidade iluminada pelo sol da manha, um sentimento de estupefação tomou conta de mim. Hoje seria um dia de aventura; nós acharíamos a notória casa onde Raskolnikov, o protagonista de Crime e Castigo, cometera dois homicídios culposos que levariam sua consciência à ruína.
Há um preceito que diz que o povo russo é um povo reservado, melancólico, que não dá muito papo e nem têm muita paciência para turistas. Completamente errônea, essa visão; se não fosse pela doce Núbia, a atendente do nosso hostel, que nos atendeu sempre com um riso deleitoso, nunca teríamos experimentado a verdadeira São Petersburgo, em toda a sua originalidade. Além disso, enquanto procurávamos pela casa de Raskolnikov, dando voltas e voltas pelo mesmo bairro, parando sempre no mesmo ponto, o que não faltou foi a ajuda de senhores, trabalhadores, mães, e até crianças.
Acontece que, para a nossa angustia, a casa não existia; era apenas uma invenção da mente dostoévskiana, um lugar fictício em meio à realidade da cidade. Pois eu digo, mesmo sem sucesso, valera a pena o sacrifício, pois mesmo ficando desiludidos com a notícia, acabamos por conhecer pessoas incríveis no caminho que pareciam fazer parte dos contos belíssimos de Tchekov, das peças humorísticas de Gogol.
No final da tarde, exaustos de tanto andar à procura do inexistente, nos deparamos com uma vista inédita do Rio Neva, seguindo o seu curso sinuoso pela cidade, deixando em suas margens vestígios dos seus habitantes — um chapéu de palha; uma garrafa de vodka; um pedaço do St. Petersburg Times. E, quem sabe talvez, nas profundezas daquela água acinzentada, não estaria a arma do crime cometido pelo jovem Raskolnikov?, parecíamos indagar isso ao voltar para o hostel, morrendo de fome e prontos para jantar com a Núbia em um típico restaurante russo.
Eu olhei para aquele céu estrelado de São Petersburgo, as pessoas nas ruas sorrindo, cantando, se divertindo como se fossem crianças novamente e, de súbito, a pergunta que foi feita pelo narrador do conto Noites Brancas, também do Dostoievski, me veio à mente, e fui forcada a perguntar a mim mesma do mesmo modo: “Será possível que sob um céu assim possam viver homens irritados e caprichosos? A própria pergunta é pueril, muito pueril...mas oxalá o Senhor, amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!”
Portanto, amigo viajante, recomendo que faça uma leitura de Dostoievski antes de visitar a sua terra natal. Ou, ao menos, leve consigo na bagagem uma cópia de Noites Brancas. Tenha coragem, e vá em frente – realize uma vertiginosa jornada no tempo e no espaço em busca da antiga São Petersburgo. Assim, quem sabe as suas próprias noites brancas em São Petersburgo não virem matéria de livro...?

Viviana Oliveira - Julho 2007